Papa Bento XVI (16/04/1927 — 31/12/2022) [Encíclica Caritas in Veritate - Caridade na Verdade, 29 de junho de 2009:]6. « Caritas in veritate » é um princípio à volta do qual gira a
doutrina social da Igreja, princípio que ganha forma operativa em critérios orientadores da ação moral. Destes, desejo lembrar dois em particular, requeridos especialmente pelo compromisso em prol do desenvolvimento numa sociedade em vias de globalização:
a justiça e o bem comum.
Em primeiro lugar, a justiça. Ubi societas, ibi ius: cada sociedade elabora um sistema próprio de justiça.
A caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é « meu »; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é « dele », o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir. Não posso « dar » ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça. Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles. A justiça não só não é alheia à caridade, não só não é um caminho alternativo ou paralelo à caridade, mas é « inseparável da caridade » [1], é-lhe intrínseca.
A justiça é o primeiro caminho da caridade ou, como chegou a dizer Paulo VI, « a medida mínima » dela [2], parte integrante daquele amor « por ações e em verdade » (1 Jo 3, 18) a que nos exorta o apóstolo João. Por um lado, a caridade exige a justiça: o reconhecimento e o respeito dos legítimos direitos dos indivíduos e dos povos. Aquela empenha-se na construção da « cidade do homem » segundo o direito e a justiça. Por outro,
a caridade supera a justiça e completa-a com a lógica do dom e do perdão [3]. A « cidade do homem » não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão. A caridade manifesta sempre, mesmo nas relações humanas, o amor de Deus; dá valor teologal e salvífico a todo o empenho de justiça no mundo.
7. Depois,
é preciso ter em grande consideração o bem comum. Amar alguém é querer o seu bem e trabalhar eficazmente pelo mesmo. Ao lado do bem individual, existe um bem ligado à vida social das pessoas: o bem comum. É o bem daquele « nós-todos », formado por indivíduos, famílias e grupos intermédios que se unem em comunidade social [4]. Não é um bem procurado por si mesmo, mas para as pessoas que fazem parte da comunidade social e que, só nela, podem realmente e com maior eficácia obter o próprio bem. Querer o bem comum e trabalhar por ele é exigência de justiça e de caridade. Comprometer-se pelo bem comum é, por um lado, cuidar e, por outro, valer-se daquele conjunto de instituições que estruturam jurídica, civil, política e culturalmente a vida social, que deste modo toma a forma de pólis, cidade. Ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto mais se trabalha em prol de um bem comum que dê resposta também às suas necessidades reais. Todo o cristão é chamado a esta caridade, conforme a sua vocação e segundo as possibilidades que tem de incidência na pólis. Este é o caminho institucional — podemos mesmo dizer político — da caridade, não menos qualificado e incisivo do que o é a caridade que vai diretamente ao encontro do próximo, fora das mediações institucionais da pólis. Quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político. Aquele, como todo o empenho pela justiça, inscreve-se no testemunho da caridade divina que, agindo no tempo, prepara o eterno. A ação do homem sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidade universal de Deus que é a meta para onde caminha a história da família humana.
Numa sociedade em vias de globalização, o bem comum e o empenho em seu favor não podem deixar de assumir as dimensões da família humana inteira, ou seja, da comunidade dos povos e das nações [5], para dar forma de unidade e paz à cidade do homem e torná-la em certa medida antecipação que prefigura a cidade de Deus sem barreiras.