“Conseqüentemente Jesus fez a santa ceia com seus discípulos não na noite de páscoa, mas na noite anterior. É esta também a opinião dos sinóticos, embora eles tivessem usado expressões que dão margem a mal-entendidos, não tão clara que separa como João a ceia noturna do seus discípulos, da ceia pascal do judaísmo.” [pág. 202]
”Não chamou a atenção o fato de Jesus na noite do dia da preparação mandar preparar um lugar e considerando-se que na Galiléia o dia da preparação já era santificado (v. p. 200), os discípulos não acharam que já tendo havido uma refeição comunitária nesta noite como introdução à Páscoa fosse exagero, principalmente por que nos dias 13 e 14 de Nisã havia também sacrifícios comunitários (Mishn. Zeb. 1,2; Tos. Pes. III,8,162). Esta refeição comunitária à noite de modo surpreendente tão aperfeiçoada, que Jesus anunciou sua iminente entrega, e em conseqüência disto fundou uma nova Aliança (Mt 26,20-29 e par.) A palavra sobre o sacrifício do sangue de Jesus não se coaduna com um cordeiro imolado no templo. Em todo o caso, os evangelhos sinóticos jamais indicaram que Jesus tenha mandado imolar e assar um cordeiro pascal para a ceia (paska em Lc 22,15s não significa cordeiro, mas se relaciona à refeição, pois só assim as seguintes palavras são compreensíveis: “eu vos digo que não mais a comerei até que se cumpra no Reino de Deus”). A não citação do cordeiro não pode ser explicada como mero acaso, pois uma negligência destas no momento mais importante da festa da Páscoa seria estranha diante dos variados pormenores da descrição. A curiosa ausência do cordeiro pascal, independente de todos os outros fatores, seria a seguinte: Jesus celebrou a ceia na noite do dia da preparação e antes do dia da imolação do cordeiro pascal. Justamente a falta do cordeiro pascal confere à instituição do novo sacrifício pascal uma forma litúrgica cheia de sentido: deste modo o próprio Jesus pôde se apresentar como o Cordeiro da reconciliação como ele foi denominado por João e Paulo (Jo 1,29; 1Cor 5,7). Embora com isto o sacrifício pascal propriamente dito só devesse acontecer no dia seguinte, Jesus antecipou, de acordo com os sinóticos, em sua ceia diversos elementos da páscoa (Mt 26,20-30 e par.): vasilha para mergulhar as ervas amargas, tortas de pão; cálice com vinho, por motivo da pressa (assim Lc 22,15); agradecimento, distribuição; corpo e sangue como sacrifício comunitário; instituição da Aliança, reconciliação; o canto do Hallel — aleluia — ainda prontidão para viagem (isto conf. Lc 22,36).” [pág. 203/204]
“A páscoa era uma festa comemorada anualmente para lembrar a libertação do povo de Israel do Egito. Antes de sua partida do Egito, cada família imolara um cordeiro e aspergira seu sangue sobre os umbrais das portas, e a sua carne, uma vez ingerida, supriu forças para o povo iniciar sua jornada pelo deserto, uma jornada em busca da tão sonhada terra de Canaã, a terra prometida.” [pág. 63]
“Os discípulos não haviam entendido que Jesus queria se identificar com o cordeiro da páscoa, para nutrir, alegrar e libertar não apenas o povo de Israel, mas também toda a humanidade. João Batista, ao se deparar com o mestre de Nazaré, produziu uma frase de grande impacto e incompreensível aos seus ouvintes - "Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo". Ele considerou o carpinteiro da Galiléia como o redentor do mundo. Ninguém, antes ou depois de Jesus, assumiu tarefa tão estonteante. O próprio Jesus, corroborando o pensamento de João Batista, se posicionou de tal maneira como o "cordeiro de Deus" e planejou morrer no dia da páscoa.” [pág. 64]
“Naquela noite incomum, Cristo não apenas lavou os pés dos seus discípulos e os estimulou a desenvolver as funções mais altruístas da inteligência, mas também os abalou com um diálogo surpreendente. Todos estavam reclinados sobre a mesa, saboreando o cordeiro da páscoa. Então, Cristo interrompeu a ceia, olhou para eles e proferiu seu mais intrigante discurso. Um discurso pequeno, mas que perturbou profundamente seus discípulos. Um discurso que é capaz de deixar qualquer pensador da psicologia e da filosofia estarrecido se o analisar. Os discípulos estavam comendo tranqüilos a páscoa, mas de repente, Jesus tomou o pão, o partiu e disse de maneira segura e espontânea: "Tomai, comei, isto o meu corpo". E tomou um cálice e, lendo dado graças, deu-lhes, dizendo: "Bebei dele todos, porque isto é meu sangue da aliança, que e derramado por muitos, para perdão de pecados". Nunca na história alguém teve a coragem de discursar sobre o seu corpo e seu sangue dessa maneira, e muito menos de dar um significado à sua morte como ele deu.” [pág. 65]
“Jesus é, sem dúvida, uma pessoa singular na história. Qualquer um que se der o trabalho de pensar minimamente na dimensão dos seus gestos ficará "assombrado". Milhões de cristãos contemplam semanalmente os símbolos do vinho e do pão no mundo cristão, porém aquilo que parece um simples ritual revela de fato as intenções de uma pessoa surpreendente.” [pág. 68]