“POR IMPORTANTE que seja, para bem julgar o estado natural do homem, considerá-lo desde sua origem e examiná-lo, por assim dizer, no primeiro embrião da espécie, não seguirei sua organização através de seus desenvolvimentos sucessivos; não me deterei procurando no sistema animal o que poderia ter sido inicialmente para ter-se tornado o que é. Não examinarei se, como pensava Aristóteles, suas unhas compridas não foram a princípio garras retorcidas, se era peludo como um urso e se, andando com quatro pés, seus olhares dirigidos para a terra e limitados a um horizonte de alguns passos não assinalavam, ao mesmo tempo, o caráter e os limites de suas ideias. Não poderei formular sobre esse assunto senão conjeturas vagas e quase imaginárias. A anatomia comparada progrediu muito pouco até hoje, as observações dos naturalistas ainda são muito incertas para que se possa, sobre tais fundamentos, estabelecer a base de um raciocínio sólido; assim, sem ter recorrido aos conhecimentos naturais que temos sobre esse ponto e sem levar em consideração as mudanças que se deram na conformação tanto interior quanto exterior do homem, à medida que aplicava seus membros a novos usos e se nutria com novos alimentos, eu o suporei conformado em todos os tempos como o vejo hoje: andando sobre dois pés, utilizando suas mãos como o fazemos com as nossas, levando seu olhar a toda a natureza e medindo com os olhos a vasta extensão do céu. [...] ...vejo um animal menos forte do que uns, menos ágil do que outros, mas, em conjunto, organizado de modo mais vantajoso do que todos os demais. [...] A terra abandonada à fertilidade natural e coberta por florestas imensas, que o machado jamais mutilou, oferece, a cada passo, provisões e abrigos aos animais de qualquer espécie. Os homens, dispersos em seu seio, observam, imitam sua indústria e, assim, elevam-se até o instinto dos animais, com a vantagem de que, se cada espécie não possui senão o seu próprio instinto, o homem, não tendo talvez nenhum que lhe pertença exclusivamente, apropria-se de todos, igualmente se nutre da maioria dos vários alimentos que os outros animais dividem entre si e, consequentemente, encontra sua subsistência mais facilmente do que qualquer deles poderá conseguir”. [pág. 57/58]
“Se não têm a pele veluda, de modo algum disso necessitam nas regiões quentes e, nas frias, desde logo sabem apropriar-se da dos animais que dominaram; se só têm dois pés para correr, têm dois braços para atender à sua defesa e às suas necessidades. Seus filhos talvez andem tardiamente e com dificuldade, mas as mães os carregam com facilidade, o que constitui uma vantagem, que falta às demais espécies, nas quais, ao ser a mãe perseguida, vê-se obrigada a abandonar seus filhotes ou a regular seus passos pelos deles.” [pág. 63]